Já contei essa história em algum lugar. Tudo bem, conto de novo !
1989, pré-seleção do Festival de Avaré. Éramos cinco pessoas na minha casa, em SP, ouvindo as centenas de fitas-cassete enviadas para o festival. Chegamos a um momento em que todos ficaram cansados, e nesse tipo de triagem as obras realmente diferenciadas escasseiam. Eis que, subitamente, numa despretensiosa fita surge o som de um violão sem paralelo, com suingue e originalidade, meio João Bosco, meio aquele Gil do “Expresso 2222″. Lépidos e atentos, todos pararam e ouviram a canção até o final, sem fôlego, só entremeados pelo silêncio respeitoso e pela indagação persistente : “quem é esse cara ?” Naquele momento todos pensaram a mesma coisa : vai ganhar o festival !
E ganhou mesmo. Dois meses depois daquela audição, daquele jeito, só de violão e voz, num ginásio com quase três mil pessoas. Era Oswaldo Lenine Pimentel, o Lenine, interpretando o imbatível “Samba do quilombo”, letra e música dele, depois gravada pelo grupo Batacotô e por Gilberto Gil (a foto acima, à direita, é da sua apresentação no festival).
Voltou à Fampop no ano seguinte, quando recebeu o terceiro lugar, com “Virou areia”, música que ele só viria a gravar em 2006, no álbum “In cité”. A mesma canção viria a ser registrada, depois do festival, nas vozes de Dionne Warwick e MPB-4.
Desde então, Avaré ficou indissociavelmente ligada à sua carreira.
Ficamos amigos. Em 1992, fui à sua casa, no Rio de Janeiro, e ele me mostrou algumas faixas, ainda inconclusas, do disco que estava gravando, chamando a atenção para a coragem do projeto : um disco só de pandeiro, violão e voz !
Mas que pandeiro ! E que violão ! Era o embrião do “Olho de peixe”, um dos meus discos de cabeceira, uma das obras de referência da década de 90 na música popular brasileira.
A importância do disco é que ele transpira brasilidade por todos os poros, tanto no pandeiro de Marcos Suzano, como no suingue do violão de Lenine. E a brasilidade continua presente mesmo nas faixas com acento pop, como em “Acredite ou não”, que abre o disco, parceria com o paraibano Bráulio Tavares : “Estranho / bizarro / tudo isso aconteceu / inesperado / normal só tem você e eu”, diz o refrão.
Lenine gosta de Caymmi, de Jobim, de Caetano. Mas também gosta de Lulu Santos e de Rolling Stones. Nesse sentido, é um filho dileto da Tropicália, da mistura, das diferenças, num balaio que, nas letras, também mistura ficção científica e histórias em quadrinhos. Isso tudo resultou num disco originalíssimo, em onze faixas autorais, isoladamente ou em parceria.
Bráulio Tavares, também vencedor do festival de Avaré (em 90), é o principal parceiro, contribuindo, além de “Acredite ou não”, com as ótima “Miragem do porto” (depois gravada por Elba Ramalho), “O que é bonito” (com os meus versos preferidos”eu gosto é do inacabado/ o imperfeito, o estragado/ o que dançou/ eu quero mais erosão, menos granito/ namorar o zero e o não/ escrever tudo o que desprezo/ e desprezar tudo o que acredito/ eu não quero a gravação, não/ eu quero o grito”), a suingada “Caribenha nação” e a ciranda”Gandaia das ondas”. A emocionante “Mais além”, também com acento pop, traz, além de Bráulio , a participação autoral de Ivan Santos e Lula Queiroga, este também o parceiro de Lenine em “O último por do sol”.
No meio de tantas canções marcantes e bem feitas, se destaca uma que, ao meu ver, é uma das raras que pode ser chamada de “clássica”, na produção da música popular brasileira dos últimos 20 anos : “Leão do norte”, faixa 9 do CD. A começar pela condução do violão de Lenine, originalíssima, e que se tornou uma influência, a partir daí, para as novas gerações de compositores e instrumentistas. Conheço dezenas de compositores jovens, na casa dos 20 anos, que tem essa forma de tocar como influência. E “Leão do norte” não é só a condução do violão, mas o vigor musical, melódico, e a letra excelente de Paulo César Pinheiro, homenageando o Pernambuco natal de Lenine, com o conhecido refrão “Eu sou mameluco/ sou de casa forte/ sou de Pernambuco, eu sou o leão do norte”.
“Leão do norte” é uma das minhas canções preferidas, um modelo de música bem-feita, e extraordinariamente bem executada, só com violão, percussão e voz, na gravação do disco.
“Olho de peixe” representa a demonstração inequívoca do talento desse pernambucano com nome de líder bolchevique (seu pai era comunista), que influenciou fortemente a música popular brasileira contemporânea. Vinte anos depois, com sua carreira consolidada internacionalmente, ainda não me sai da cabeça a audição daquela fita, na Alameda Franca, 1188, apartamento 32, quando ouvi, pela primeira vez, a música de Lenine.